Pular para o conteúdo principal

A senhora poderia explicar a letra?

Doutora, é mais ou menos como se não doesse, é quase dor, fica muito perto, imagino que sentem na mesma fileira afastados um do outro por duas ou três cadeiras, e com isso quero dizer somente que não chega a ser rigorosamente um incômodo, mas admito, dói um pouco quando, antes de passar na catraca do ônibus ou no instante imediatamente anterior à impressão do extrato bancário, para ficar em apenas duas situações mais corriqueiras, tenho um relâmpago de lembrança, e esse minuto em que tudo estremece é tão chocante que descer na parada seguinte, que é uma coisa bastante simples, ganha contornos mecânicos, robóticos, uma perna, depois outra perna, finalmente a calçada, agora um passo, depois outro passo, me flagro quase ensinando o abecedário dos movimentos.

Nessas horas me sinto totalmente arruinada, é algo absurdo, é claro que é, se me entende, se compreende como é ser invadida por pensamentos que não se controlam, vêm e vão, o tipo do pensamento que se evita o dia inteiro fingindo-se adulta, experiente, vivida, arrumando-se tarefas, louça suja, apagar mensagens, cabelo, unhas, livros, sexo, o tipo do pensamento que aninhamos secretamente sob as nossas asas mesmo sabendo que o círculo mais íntimo de amigas reprovaria cada etapa dessa operação alegando unicamente que os prejuízos posteriores não cobririam sequer um terço do prazer, eles que são bons em estatística, então não me pergunte como podem simplesmente chegar a cálculo semelhante, não tenho a menor intenção de entender como fazem isso.

O que me interessa verdadeiramente, doutora, e aqui voltamos à estaca zero, mas de qualquer modo os rodeios ajudam a clarear, sim, o que justifica minha presença aqui: me diga, a senhora sabe, tem a mais vaga ideia de que isso que estou sentindo agora é dor ou apenas estresse por causa da mudança?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...