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Frapê ou frape?

Outro conto. Fazia tempo que não punha nada aqui. Nada, dir-se-ia, ficcional.

Sabem, implico com esse verbo. Principalmente no passado. É pernóstico. Poucas pessoas dizem “punha” no dia-a-dia. Poucas. Quase ninguém. E quem diz diz porque é fresco e não apenas porque precisa, tem necessidade de referir algo no passado.

Percebam como não gosto de duvidar do que quer que seja.

Uma coisa: gosto quando vejo alguém construir uma frase usando sujeito acrescido de um pronome que reitera esse elemento da cadeia sintática.

Por exemplo: “O Silveirinha, ele não matou ninguém”. Claro, não entendo ainda por que as pessoas falantes da língua portuguesa precisam reforçar sintaticamente uma função já presente na frase. Ou vocês entendem?

E isso não é precisamente um anacoluto. Drummond não vem ao caso. Não há uma pausa entre o nome próprio e o pronome. Ambos vêm numa ducha, num veio, numa onda sonora que pouco se importa com a repetição do sujeito.

Será carência? Não sei. Espero que Locke consiga responder isso na quinta temporada de Lost.

Segue o conto. Amanhã virei cheio de gás. Porque na semana estarei atolado na reforma ortográfica. Sou vou respirar reforma ortográfica. Aliás, não venho fazendo outra coisa nos últimos dias. Sempre durmo pensando na droga dessa reforma ortográfica.

Claro que tudo isso é exagero mesmo.

Sinto falta de um livro que emprestei. Não quero dizer abertamente de que livro estou falando. Apenas que emprestei. Ele é fundamental. Depois dele, passei a querer ler outras coisas do mesmo autor. Gostei. Talvez até compre novamente o livro. Porque tenho vergonha de pedi-lo novamente.

Bom, estou brincando, camaradas. Guardem seus livros. Eu mesmo tenho uma penca de volumes emprestados que sequer cogito devolver.

Claro que estou brincando.

Sabem, segunda-feira tem Cidade dos sonhos, do Lynch. Quero ver. Quero mesmo ver essa coisa.

Por fim: acabamos de solucionar um problema que vinha nos consumindo. Por que a gata tinha a parte traseira do corpo coberta por algo semelhante a uma gosma? Como se ela tivesse brincado com a placenta de algum feto jogado na lata do lixo por uma vendedora de DVDs piratas. Ou coisa parecida.

Primeiro, levei em conta o fato de que o animal foi trazido da rua para dentro de casa. Em seguida, foi banhado e alimentado. E, obviamente, medicado. Tinha pulgas mil. Todos murcharam e caíram. Tinha feridas que se cicatrizaram semanas depois. Tinha uma crosta de lama grudada ao rabo e nas pontas das orelhas que se dissolveu com uns bons esfregões.

Tudo isso virou coisa do passado. Até que essa gosma resolveu aparecer. Jurava que era micose. Antes disso, que a gata embebera-se num líquido menstrual cuja origem, se identificada, poderia resolver as equações das cordas. Por sua vez, o resultado dessas equações diria se algum time cearense conseguiria subir para a primeira divisão do campeonato brasileiro.

Nada.

Bom, como não conseguisse desvendar o mistério da secreção felina, fui comer alguma coisa. Pensei na bolinha de peixe do Vilas, mas acabei mesmo tomando café e mordiscando uma bolacha por aqui. Uma solução caseira. Sem bebidas no meio. Sem álcool, quis dizer.

Até que ela, a esposa dileta, mata a charada. Num insight estupendo, numa sacada genialíssima, num lance de xadrez que faria Bob Fischer pedir penico num segundo, ela descobriu por que nossa gatinha vivia melada daquele jeito. Micose? Não. Fluxo menstrual? Nada. Esperma de algum bichano projetado através da milimétrica fenda da porta da cozinha por meio de algum tipo de aerossol desenvolvido especialmente para essa situação? Nem pensar.

A parte traseira da gata estava apenas... Suada. Isso mesmo, suada. Tudo porque a coitadinha vinha dormindo num recipiente plástico, que ela mesma improvisara e adotara como berço esplêndido.

Achei genial.

Finalmente, segue o conto. Tinha esquecido dele. Literalmente.


OS GIGANTES ATRAVESSAM ABISMOS


Tirar retrato. Tirar retrato da rua. Até a esquina são alguns passos. Tirar retrato. Bater, olhar, ver, não ver. Vir. Tirar retrato exige passo lento. Passo. E passo. Tirar retrato convém.

Tirar retrato não vem.

— repitam o mantra três vezes. Isso garante que a leitura não seja feita por robôs.


#1
Senta. A cachorra senta. Bem aqui. O animal obedece. Parece triste, derradeira. Talvez apenas pareça.

Pretende um dia comer a própria dona? Um dia, comer a própria dona? A própria um dia? Roer os ossos da velha e cuspir o que não presta longe - quem sabe. Os trapos rotos. Os trapos, trapos.

Roer cabelos, pele, pernas, braços. Descascar a casca da velha centenária, devolver tudo, tudo, cada pedaço imprestável do corpo velho aos que virão e carecem agora do fermento necessário à empreitada que é –

Atravessar as GA-



XIAS.

A velha pensa o mesmo? Ninguém pode responder. Por enquanto, apenas sentam. Às 19h30, quase bocejam na rua. A velha, a cachorra.

A velha tem oitenta, a velha tem noventa anos. Vive com dois netos. Mas disso não tenho certeza. Apenas vejo os meninos correndo na rua. Talvez sejam dos vizinhos. Talvez sejam da cachorra. Talvez estejam mortos como nos filmes de mortos. Crianças atormentam velhos, vivos ou mortos.


#2
Tenho engulhos.

Tenho engulhos.

Tenho engulhos sucessivos quando acordo cedo.

Tenho engulhos sucessivos quando acordo cedo, seis e trinta, e vejo alguém na esquina entornando sem graça um vasto copo de cachaça.


#3
Pede o dinheiro que falta. Pede. Dez reais. Discutem. Um velho. Um homem gordo. Interrompem a partida. Assistiam o jogo de futebol da segunda divisão quando o velho escorou-se ali, desconfiado. Queria falar mas faltava. Televisão posta na rua estreita. Ela de um lado, torcida do outro. No meio, dez reais.

Queria falar: lembra o dinheiro? Dez reais. Meu dinheiro que falta. Discutiram. Voltava de algum lugar. Baixei a cabeça. Alguém disse surpreso “Mas é tão pouco!”.

“Mas faz falta”, respondeu o velho. E foi embora sem os dez reais.

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