Pular para o conteúdo principal

Bolhas

Ele vivia dentro de uma. Há quanto tempo? Ninguém sabia. Dentro da bolha. Não uma de sangue, como as que estouram no meio da rua e matam subitamente, sem dar tempo para últimos pedidos nem passadas rápidas na casa do namorado. Não há hipótese de despedida quando a bolha enfeza-se, ela arremete e pronto, está decidido: o mundo girará.

A bolha move-se. Pode parecer que não, mas ela desloca-se diariamente em todas as direções, vai à esquerda e à direita, para frente e para trás. Não tem rodinhas, sua estrutura de bolha não comporta periféricos que lhe possam amenizar a existência. Mesmo assim, a bolha é suave. Rua abaixo ou acima, ela desliza. Sem ser vista, passa debaixo de janelas e sob marquises de lojas, lanchonetes e sapatarias. NOS vê, inquieta-se. Vê-NOS. Em seguida dobra a esquina, leve.

O que seria das bolhas sem a nossa desatenção? Nada. Talvez estourassem mais facilmente. Talvez fossem mais simples. Talvez tivessem rodinhas. Dentro, ocas.
Ficamos surpresos ao descobrirmos bolhas ambulantes. Quando descobrimos.

A bolha de Fernando era de outra natureza. Era maior que qualquer outra que já tivesse visto e incolor. Sem cheiro, sem forma. Quer dizer, tinha forma de bolha. Uma bem grande, colorida. Uma bolha de animação, jovem, alegre, bolha feita com canudo e sabão.

Ela o engolira ainda criança. Engolfara-o sem pestanejar. Quando viu, estava lá, boiando no líquido que chacoalha sempre que a bolha, no seu rolar contínuo, encontra um buraco na rua ou um muro imprevisto. A bolha não se surpreende. Ela segue em frente, sempre.

Um dia, Fernando descobriu-a. Não teve medo, apenas curiosidade. Entrou ou foi tragado? Boca aberta, vácuo criado, Fernando caminhou até o batente, atravessou a soleira da porta e entrou. Antes, encostou o dedo na superfície da bolha, que respondeu prontamente. Fernando chorou. A bolha suspirou feliz, iluminada. Bom para a bolha.

Bom para Fernando. Todos ganham. As bolhas são ótimas substitutas de tudo que há. Provêm, providenciais, paralelas. As bolhas preparam-se durante anos para serem assim, maquinais. Pernas de pau substituem membros inferiores, próteses substituem pernas de pau, fluidos controlados por computadores super-desenvolvidos assumem o lugar das próteses. A bolha substitui tudo. Sabem cuidar. Oferecem-se, doam-se.

Fernando não sente calor ou frio, apenas a bolha. Sente-se confortável na bolha. De lá assiste a tudo, ensaia escapadelas. Seus filhos não desconfiam de nada. Logo Fernando morrerá. De certo modo, matará a bolha. Ou a idéia, o conceito. Crescidas, as crianças saberão o que convier. E apenas isso.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Trocas e trocas

  Tenho ouvido cada vez mais “troca” como sinônimo de diálogo, ou seja, o ato de ter com um interlocutor qualquer fluxo de conversa, amistosa ou não, casual ou não, proveitosa ou não. No caso de troca, porém, trata-se sempre de uma coisa positiva, ao menos em princípio. Trocar é desde logo entender-se com alguém, compreender seu ponto de vista, colocar-se em seu lugar, mas não apenas. É também estar a par das razões pelas quais alguém faz o que faz, pensa o que pensa e diz o que diz. Didatizando ainda mais, é começar uma amizade. Na nomenclatura mercantil/militar de hoje, em que concluir uma tarefa é “entrega”, malhar é “treinar”, pensar na vida é “reconfigurar o mindset” e praticar é “aprimorar competências”, naturalmente a conversa passa à condição de troca. Mas o que se troca na troca de fato? Que produto ou substância, que valores e capitais se intercambiam quando duas ou mais pessoas se põem nessa condição de portadores de algo que se transmite? Fiquei pensando nisso mais te...

Atacarejo

Gosto de como soa atacarejo, de seu poder de instaurar desde o princípio um universo semântico/sintático próprio apenas a partir da ideia fusional que é aglutinar atacado e varejo, ou seja, macro e micro, universal e local, natureza e cultura e toda essa família de dualismos que atormentam o mundo ocidental desde Platão. Nada disso resiste ao atacarejo e sua capacidade de síntese, sua captura do “zeitgeist” não apenas cearense, mas global, numa amostra viva de que pintar sua aldeia é cantar o mundo – ou seria o contrário? Já não sei, perdido que fico diante do sem número de perspectivas e da enormidade contida na ressonância da palavra, que sempre me atraiu desde que a ouvi pela primeira vez, encantado como pirilampo perto da luz, dardejado por flechas de amor – para Barthes a amorosidade é também uma gramática, com suas regras e termos, suas orações subordinadas ou coordenadas, seus termos integrantes ou acessórios e por aí vai. Mas é quase certo que Barthes não conhecesse atacarejo,...

Projeto de vida

Desejo para 2025 desengajar e desertar, ser desistência, inativo e off, estar mais fora que dentro, mais out que in, mais exo que endo. Desenturmar-se da turma e desgostar-se do gosto, refluir no contrafluxo da rede e encapsular para não ceder ao colapso, ao menos não agora, não amanhã, não tão rápido. Penso com carinho na ideia de ter mais tempo para pensar na atrofia fabular e no déficit de imaginação. No vazio de futuro que a palavra “futuro” transmite sempre que justaposta a outra, a pretexto de ensejar alguma esperança no horizonte imediato. Tempo inclusive para não ter tempo, para não possuir nem reter, não domesticar nem apropriar, para devolver e para cansar, sobretudo para cansar. Tempo para o esgotamento que é esgotar-se sem que todas as alternativas estejam postas nem os caminhos apresentados por inteiro. Tempo para recusar toda vez que ouvir “empreender” como sinônimo de estilo de vida, e estilo de vida como sinônimo de qualquer coisa que se pareça com o modo particular c...