Pular para o conteúdo principal

Gosto, não gosto



Discutir gostos agora é uma atividade sazonal. Às barbas de dezembro, os fóruns locais se agitam. A respeito do assunto, tava aqui pensando alto sobre como muitas vezes somos inexplicavelmente cruéis com quem julgamos ter um gosto apurado ou sofisticado (duas palavras traiçoeiras), classificando-o de elitista. E também sobre como nos esquecemos de que o ecletismo é quase sempre um elitismo com sinal invertido, ainda mais impositivo e excludente. E, finalmente, sobre como é antipático desgostar do que é de gosto comum.

Um discurso possível: prefiro X a uma série de outras coisas. X, para mim, representa o melhor, o mais bem acabado, o que não se esvai no processo de consumo. Mesmo quem nunca ouviu falar de X, caso tenha a oportunidade de conhecê-lo, vai fruir algo de qualidade. Dizem que X é para poucos, entre os quais fui maldosamente incluído. Miopia. X é para todos, é para muitos. Num país governado por mim, as pessoas teriam amplo acesso a X. Nos réveillons promovidos sob minha batuta, X seria a regra e não a exceção.

Um segundo discurso possível: Y, ao contrário de X, é uma abominação estética, e quem o consome leva para casa um produto estragado, o que me faz lembrar as pessoas que ingeriram leite diluído em água oxigenada e depois tiveram que ir até o hospital passar por uma lavagem no estômago. Como o leite, Y também é venenosamente palatável. Agrada à massa, é verdade, mas a um custo alto. Qual? O de não problematizar a experiência de consumo. Pior: o de se esgotar no ato do consumo.

Mas quem disse que todo ato de consumo carece de substância, que toda fruição precisa ser epifânica? Um ponto de vista obtuso. Y é o que é: enlatado. E, como tal, não fala à minha sensibilidade – mas já não basta falar à da maioria? Precisa, além disso, falar à minha? Num país governado por mim, Y, exatamente pelos atributos que demonstra possuir, seria amplamente estimulado. Num réveillon promovido pelo meu governo, Y seria a regra. Segundo padrões particulares, não indicaria a ninguém. Para deleite público, todavia, considero-o biscoito fino.

Um terceiro discurso possível: X e Y andam quase sempre juntos. É fácil separá-los, mas eu recomendaria manter os dois lado a lado. Assim X jamais se esquecerá de que, entre vogais e consoantes, há um universo inteiro formado por letras que ninguém escuta nem vê. E que a cada uma dessas letras mudas e invisíveis corresponde um gosto e a cada gosto, uma variação.

E qual seria o aprendizado de Y? O de que a chancela da maioria não condena ao inferno; tampouco salva. Admita-se o gosto pelo abominável sem temer classificá-lo como tal: é abominável, e eu gosto.

Por razões óbvias, esse buraco não tem fim.

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas