Pular para o conteúdo principal

resENHA

O SENHOR DA GUERRA

A GUERRA DO FUTEBOL, DO POLONÊS RYSZARD KAPUSCINSKI (1932-2007), TRAZ RELATOS DE CONFLITOS ARMADOS OCORRIDOS DURANTE A GUERRA FRIA. ENTRE ELES, O EMBATE QUE SE SUCEDEU À PARTIDA ENTRE HONDURAS E EL SALVADOR NAS ELIMINATÓRIAS DA COPA DE 1970

HENRIQUE ARAÚJO>>>ESPECIAL PARA O POVO

Embora haja muitos fatores que levem a minimizar a defasagem entre os anos que demarcam um período histórico qualquer e outro, um deles merece destaque: a capacidade exclusivamente humana de resolver suas pendências intra-espécie utilizando armamento pesado. Dito isso, pode-se partir para a leitura de A guerra do futebol (Companhia das Letras, 2008) sem nenhum tipo de preocupação que resulte do fato de as reportagens compiladas no livro de Ryszard Kapuscinski terem sido escritas entre os anos de 1960 e 1980. Sim, aquela África não é a mesma desta. O cenário mudou. Como disse alguém, “os pára-quedistas belgas não estão mais lá” e alguns ditadores foram substituídos por outros. De todo modo, os conflitos permanecem. Mesmo à distância, o olhar lançado por Kapuscinski, então correspondente da Agência Polonesa de Notícias no “continente negro”, é tristemente atual.

“Odeio escrivaninhas!”

Escritor e jornalista – para ele, as duas coisas eram uma só -, o correspondente estrangeiro chegou à África num tempo “em que o mundo realmente se interessava” por ela. Por lá, nações livres surgiam a cada dois dias, em cada esquina. Com o declínio do poderio econômico europeu (a II Guerra Mundial havia consumido todos os recursos disponíveis) e a crescente polarização entre Estados Unidos e União Soviética, essa ebulição vinha a calhar. Afinal, nada melhor que países soberanos, cuja independência era incentivada pela Organização das Nações Unidas, como aliados numa guerra que, embora não produzisse conflitos diretos entre os dois principais antagonistas, espalhava chispas noutros pontos do globo. Entre eles, algumas republiquetas terceiro-mundistas.

Foi desse filme que um repórter metido a aventureiro topou participar. Após ter decretado odiar escrivaninhas, esses móveis que escravizam os homens e são responsáveis por toda a burocratização do mundo atual (não custa lembrar, o mundo atual a que se refere Kapuscinski era o de 1960), o polonês, a serviço da PAP, a agência noticiosa de seu país, instalou-se na África por muito tempo. Depois, na Ásia. Em seguida, na América Latina. Na África, testemunhou convulsões políticas que levaram à morte prematura de alguns líderes forjados nos bares, esses espaços semelhantes ao Fórum Romano. Na América Central, cobriu A guerra do futebol, um conflito entre os vizinhos El Salvador e Honduras deflagrado imediatamente após ter sido dado o apito final em um jogo que colocava de lados opostos as seleções dos dois países. O ano era 1970. Os times disputavam uma vaga na Copa do Mundo que consagraria Pelé. Numa melhor três, El Salvador levou a melhor. Entre uma partida e outra, porém, a rivalidade, somada ao crescimento populacional vertiginoso dos salvadorenhos e à concentração de terras, sedimentou uma guerra-relâmpago que durou “cem horas e resultou em 100 mil mortos e dezenas de milhares de feridos”.

“Um jornalista precisa constatar tudo na própria pele”

E lá estava Kapuscinski: plantado entre as fileiras dos esfarrapados hondurenhos, rastejando com a cara enlameada, escapando da morte sempre por algum improvável conjunto de acasos. Horas depois, batucando num aparelho de telex e noticiando ao mundo: na América Central, um conflito armado estourara após uma partida de futebol. Em A guerra do futebol, o correspondente – que sai em busca de conflitos como um verdadeiro caçador de furacões – parece querer pôr à prova as máximas do velho Murphy.

Lançado na Polônia dois anos antes de sua morte, em 2007, o livro apresenta um conjunto de reportagens escritas ora com a verve de um repórter aventureiro – e todo o rebuscado efeito que ela procura às vezes provocar com frases pomposas e trechos que exalam a estupefação do viajante diante de arcanos exóticos –, ora com os recursos expressivos de um romancista mais quieto, observador dos acontecimentos. É munido desse espírito que ele escreve: “Não há nada pior do que se encontrar sozinho em um país estranho em meio a uma guerra alheia”. Apesar do tom lamentoso, foi esse suplício que Kapuscinski escolheu como modo de vida.

SERVIÇO:

A guerra do futebol (Companhia das Letras, 2008. 276 páginas), de Ryszard Kapuscinski. Preço sugerido: R$ 43.


Trecho do livro


“Poucas pessoas têm noção do que é o trabalho de um correspondente de uma agência de notícias.

Sua função é cobrir todos os acontecimentos importantes ocorridos numa área de trinta milhões de quilômetros quadrados (a da África), saber o que acontece ao mesmo tempo nos cinqüenta países do continente, o que ocorreu em cada um deles no passado e o que poderá ocorrer no futuro. Além disso, uma pessoa que queria ser correspondente não pode ter medo de: moscas tsé tsé, cobras negras, elefantes e canibais, ou de beber a água dos rios e riachos, de ser roubado ou agredido, de ficar arrepiado só de pensar em amebas e doenças venéreas.” A guerra do futebol, de Ryszard Kapuscinski

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Museu da selfie

Numa dessas andanças pelo shopping, o anúncio saltou da fachada da loja: “museu da selfie”. As palavras destacadas nessa luminescência característica das redes, os tipos simulando uma caligrafia declinada, quase pessoal e amorosa, resultado da combinação do familiar e do estranho, um híbrido de carta e mensagem eletrônica. “Museu da selfie”, repeti mentalmente enquanto considerava pagar 20 reais por um saco de pipoca do qual já havia desistido, mas cuja imagem retornava sempre em ondas de apelo olfativo e sonoro, a repetição do gesto como parte indissociável da experiência de estar numa sala de cinema. Um museu, por natureza, alimenta-se de matéria narrativa, ou seja, trata-se de espaço instaurado a fim de que se remonte o fio da história, estabelecendo-se entre suas peças algum nexo, seja ele causal ou não. É, por assim dizer, um ato de significação que se estende a tudo que ele contém. Daí que se fale de um museu da seca, um museu do amanhã, um museu do mar, um museu da língua e por

Conversar com fantasmas

  O álbum da família é não apenas fracassado, mas insincero e repleto de segredos. Sua falha é escondê-los mal, à vista de quem quer que se dê ao trabalho de passar os olhos por suas páginas. Nelas não há transparência nem ajustamento, mas opacidade e dissimetria, desajuste e desconcerto. Como passaporte, é um documento que não leva a qualquer lugar, servindo unicamente como esse bilhete por meio do qual tento convocar fantasmas. É, digamos, um álbum de orações para mortos – no qual os mortos e peças faltantes nos olham mais do que nós os olhamos. A quem tento chamar a falar por meio de brechas entre imagens de uma vida passada? Trata-se de um conjunto de pouco mais de 30 fotografias, algumas francamente deterioradas, descubro ao folheá-lo depois de muito tempo. Não há ordem aparente além da cronológica, impondo-se a linearidade mais vulgar, com algumas exceções – fotos que deveriam estar em uma página aparecem duas páginas depois e vice-versa, como se já não nos déssemos ao trabalho d

Cansaço novo

Há entre nós um cansaço novo, presente na paisagem mental e cultural remodelada e na aparente renovação de estruturas de mando. Tal como o fenômeno da violência, sempre refém desse atavismo e que toma de empréstimo a alcunha de antigamente, esse cansaço se dá pela falsa noção da coisa estudadamente ilustrada, remoçada, mas cuja natureza é a mesma de sempre. Não sei se sou claro ou se dou voltas em torno do assunto, adotando como de praxe esse vezo que obscurece mais que elucida. Mas é que tenho certo desapreço a essas coisas ditas de maneira muito grosseira, objetivas, que acabam por ferir as suscetibilidades. E elas são tantas e tão expostas, redes delicadas de gostos e desgostos que se enraízam feito juazeiro, enlaçando protegidos e protetores num quintal tão miúdo quanto o nosso, esse Siará Grande onde Iracema se banhava em Ipu de manhã e se refestelava na limpidez da lagoa de Messejana à tarde. Num salto o território da província percorrido, a pequenez de suas dimensões varridas